A revolução pós-gênero

09/11/2018

Nem rosa nem azul. Nova geração de consumidores está disposta a repensar padrões, impondo desafios e oportunidades de crescimento para empresas que se dispuserem a oferecer produtos unissex

Por Joice Rodrigues

“Querida empresa Lego: Meu nome é Charlotte. Tenho sete anos e amo legos, mas não gosto que haja mais garotos e quase nenhuma garota lego. Hoje eu fui a uma loja e vi legos em duas seções – na rosa, das meninas, e na azul, dos meninos. Tudo o que as meninas faziam era sentar em casa, ir à praia e fazer compras, e elas não tinham emprego. Mas os meninos participavam de aventuras, trabalhavam, salvavam pessoas e até nadavam com tubarões. Eu quero que vocês façam mais bonequinhas de lego e as deixem participar das aventuras e se divertirem, ok!?! Obrigada”.

Foi assim, em uma carta escrita à mão, que a inglesa Charlotte Benjamin cobrou equidade da gigante fabricante dinamarquesa dos tradicionais blocos de montar. Não demorou até que o pedido da garota viralizasse nas redes sociais e se tornasse um case de discussão de estereótipos de gênero mundo afora. Tanto que, logo depois do puxão de orelha de Charlotte, ocorrido em 2014, a Lego criou uma linha de bonecas cientistas – e o apelo da pequena consumidora parece ter sido atendido.

A mudança de postura da Lego não é exceção. A Mattel, por exemplo, incluiu em uma de suas campanhas publicitárias crianças de ambos os sexos brincando com a boneca Barbie. Já a varejista americana Target não separa, há três anos, as seções de brinquedos por gênero; e a Amazon deixou de usar o filtro “menino ou menina” nas buscas de brinquedos em seu site. Alexandre Salvador, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), pontua que essa tendência, observada em diversos setores, se deve à ampliação do acesso dos consumidores às informações. “Com análise de dados de big data, é possível identificar e compreender segmentos comportamentais”, diz.

BRINCAR DE DESCONSTRUIR

Iniciativas de grandes marcas internacionais têm repercutido nos últimos tempos, mas a brasileira Xalingo já se preocupava com igualdade de gêneros quando essa discussão ainda engatinhava. Fabricante de brinquedos educativos, na década de 1960 a empresa estampou na caixa de um de seus produtos mais famosos um menino e uma menina brincando de ser engenheiros, empilhando blocos de madeira coloridos que imitavam tijolos, pontes e telhados. Para Tamara Campos, gerente de Marketing da Xalingo, a ideia pioneira ajudou a começar a quebrar barreiras e a desconstruir rótulos.

De lá para cá, outras inovações foram promovidas pela empresa. Em 2016, a Xalingo deixou de lado o rosa e lançou uma linha com cozinha e refrigerador nas cores vermelha, preta e cinza. “Ouvimos os consumidores e seguimos a tendência do mercado, trazendo os brinquedos para um contexto mais próximo da realidade. Dificilmente uma cozinha rosa será real. Recebemos algumas críticas, mas o mercado teve uma grande aceitação”, conta Tamara, que viu as vendas de itens sem gênero específico dispararem. No ano passado, foram comercializados mais de 12 mil produtos que atendiam meninos e meninas.

Mariléia Catarina Rosa, psicóloga do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas de São Paulo, explica que a não diferenciação por gênero é positiva porque dá liberdade na hora da escolha e favorece o desenvolvimento psíquico saudável da criança. “Os rótulos impedem o sujeito de vivenciar seu mundo lúdico e explorar sua criatividade”, diz.

IMPACTO NA MODA

A proposta de produtos sem gênero definido também ganha espaço na moda. Enquanto a italiana Gucci desafia os conceitos de masculino e feminino nas passarelas internacionais, no Brasil, o estilista Alexandre Herchcovitch adere ao pós-gênero na grife À La Garçonne e na marca de roupas infantis PUC. Em 2016, a C&A saiu em defesa da diversidade ao mostrar um homem usando um vestido durante o horário nobre da TV numa campanha intitulada Tudo Lindo & Misturado. A peça publicitária causou burburinho nas redes sociais, com pessoas apoiando a iniciativa e outras defendendo o boicote à marca.

O conceito pós-gênero aponta para uma demanda de mercado que pode redefinir, em breve, os padrões de consumo. Uma pesquisa mundial feita em 2016 pela agência de publicidade J. Walter Thompson mostra que 56% dos jovens que têm entre 13 e 20 anos afirmam usar pronomes neutros e mais de um terço dessa mesma geração alega ter certeza de que o gênero já não define uma pessoa. Para Salvador, empresas que atuam com base em divisões mais tradicionais tendem a perder espaço. Esse processo de mudança pode representar, portanto, uma vantagem competitiva para pequenos e médios negócios. “Compreender comportamentos e definir segmentos é muito mais sólido do que formar grupos apenas por características sociodemográficas”, explica. “Marcas pequenas ou novas têm maior predisposição para compreender essas questões e se adequar”, diz.

A grife mineira LED viu na tendência pós-gênero uma oportunidade. Seu diretor- -criativo, Célio Dias, brinca ao dizer que a marca, lançada em 2014 focada no público feminino, “nasceu uma menina e com o tempo se descobriu não-binária”. Ele confessa que no princípio “não sabia muito bem onde estava pisando”, mas acabou aprendendo que suas criações não precisariam ser neutras, nem nos tons nem nas formas, e começou a trabalhar com cores e estampas fortes. Deu certo. Prova disso é que a LED exportou para a Alemanha e integrou o line-up da mais recente edição do São Paulo Fashion Week. “Hoje, meu maior desafio é estar em pontos de vendas que entendam o meu produto”, afirma Dias.

Salvador considera que essa é a hora das empresas refletirem sobre a mensagem que passam aos consumidores. “Uma das mudanças do conceito de marketing contemporâneo de que mais gosto é o fato de não considerar somente clientes, consumidores, parceiros e acionistas, mas todos os stakeholders, a sociedade como um todo”, salienta. Ele alerta: “não dá mais para uma marca ouvir somente seu público alvo e agir de acordo com seus desejos e necessidades. É cada vez mais importante olhar ao redor e avaliar o efeito que suas ações causarão. Algumas já perceberam essa oportunidade e estão tentando se adequar”.

 

Fonte: Revista Desenvolve SP – edição 6, p.38