Negócios 4.0

05/11/2018

A transformação digital não será uma decisão estratégica das empresas, mas uma questão de sobrevivência. Veja os desafios e as oportunidades de uma nova revolução que é cultural

Por Bruna Martins Fontes

“Estamos a bordo de uma revolução tecnológica que transformará fundamentalmente a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos. Em sua escala, alcance e complexidade, a transformação será diferente de qualquer coisa que o ser humano tenha experimentado antes”, escreveu o alemão Klaus Schwab no livro A Quarta Revolução Industrial, lançado em 2016. Fundador do Fórum Econômico Mundial, Schwab alerta que essa nova Era, que já está em curso, será impulsionada por tecnologias disruptivas – como big data, robótica, inteligência artificial, impressão 3D, nanotecnologia e internet das coisas, que cada vez mais conecta à web itens como gadgets e objetos usados no dia a dia. A convergência de diversas tecnologias provocará mudanças radicais. Mas será que estamos preparados?

“A chamada Indústria 4.0 integra tecnologias, como sensores e máquinas em rede, para controlar a produção e aumentar a produtividade, otimizando o tempo e o uso de recursos naturais”, sintetiza Vinícius Fornari, especialista em Políticas e Indústria da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Mas as transformações não pararam por aí: outros dois grandes setores da economia – o comércio e os serviços – também estão sendo impactados. Já é possível ir além e falar, portanto, de Negócios 4.0. “Hoje temos uma oportunidade única para novas empresas surgirem nesse ecossistema digital”, avalia Marcia Ogawa, sócia-líder da Deloitte para o atendimento à indústria de Tecnologia, Mídia e Telecomunicações.

Essa revolução aproveita uma realidade em que cada vez mais dispositivos podem se comunicar e coletar dados do ambiente e de usuários – por meio de smartphones e sistemas de iluminação ou de produção – para depois armazená-los em nuvem para serem examinados e transformados em ações, como de redução de perdas e custos ou desenvolvimento de estratégias de marketing. “Antes, uma empresa só podia explorar dados que viessem das suas transações. Agora, dá para analisar informações públicas, obtidas do consumidor ou do produto e em cada parte do processo, para criar novos modelos de negócios”, diz Marcia. Ela destaca o uso da internet das coisas para obtenção desses dados, uma vez que todas as máquinas do sistema de produção podem ser conectadas. “É uma tecnologia de comunicação essencial, e que está ficando mais barata”, acrescenta.

NOVOS MODELOS DE NEGÓCIO

O ambiente digital permite, inclusive, a integração de cadeias globais. Em nível mais avançado, as máquinas podem até trabalhar sozinhas. Algumas até já fazem isso, como carros da Nissan que começaram a ser testados no Japão. A indústria automotiva é um dos setores que mais tem inovado. Parte da realidade que vivemos atualmente foi imaginada no clássico desenho Os Jetsons, exibido originalmente entre 1962 e 1963, em que uma família vivia em 2062, em um cenário futurista, onde máquinas e robôs davam conta praticamente de tudo. “Essa é uma revolução que está em estágio inicial em muitas partes do mundo, e aqui não é diferente”, pontua Fornari. A Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) estima que de 2,5% a 5% das indústrias estejam atuando nesse modelo em solo nacional, um número que pode chegar a 10% em 15 anos.

Embora gradativas, essas mudanças terão um impacto tremendo. A prática de usar desde sensores até redes de relacionamento para captar dados e analisar o comportamento de clientes ou checar a eficiência de rotas já se aplica, por exemplo, ao varejo e à logística. “Uma loja pode acompanhar o comportamento do consumidor nas mídias sociais ou usar sensores nas portas para saber quantos que passaram por ali estão usando Wi-Fi e, assim, criar diferentes oportunidades de venda”, observa Tarso Schroeder, professor de inovação, empreendedorismo e negócios 4.0 do Instituto Superior de Administração e Economia (Isae), ligado à Fundação Getulio Vargas.

 

MENTALIDADE DISRUPTIVA

Startups estão nascendo com essa nova mentalidade, especialmente as fintechs (que atuam no setor financeiro), as healthtechs (saúde) e as agtechs (agropecuário – veja reportagem na página 18). No setor de serviços, o 4.0 ainda é pouco explorado, e se traduz especialmente em business intelligence para cruzar dados dos clientes e de mercado para identificar oportunidades. A HDL, do ramo de logística, adotou essa novidade e utiliza as informações para antecipar necessidades e oferecer novas soluções. “Há bastante espaço para explorar a análise de dados em setores como o financeiro, o de marketing e vendas, e até para criar empresas especializadas em prestar esse serviço no B2B (business-to-business)”, analisa Marcia Ogawa.

As possibilidades são múltiplas. Empresas já estabelecidas, no entanto, podem ter dificuldades para se adaptar. É o que mostra uma pesquisa feita pela Deloitte com mais de 1.600 executivos de 19 países, incluindo o Brasil, divulgada em janeiro. Menos de um quarto dos líderes ouvidos disse se sentir preparado para aplicar soluções tecnológicas que transformem seu modelo de negócio, assim como para trabalhar de forma mais integrada com outros atores da cadeira produtiva. De maneira geral, eles compreendem conceitualmente as alterações que o ambiente 4.0 provocará, mas não têm uma visão clara de como devem agir para se beneficiar disso.

Mas por que é tão difícil mudar? A primeira grande quebra de paradigma, alertam os especialistas, é que essa é uma transformação cultural. Na economia clássica, a empresa é mais importante que o ecossistema, mas na digital ambos têm o mesmo peso. O empreendedor Tiago Mattos, futurista e colaborador da Singularity University, que tem a Nasa e o Google entre seus parceiros, vai além: acredita que, na economia pós-digital, o ecossistema será até mais importante que a empresa. De uma forma ou de outra, será fundamental se adequar para sobreviver. Para se manter competitivo em um ambiente 4.0, não se pode perder de vista o aumento da produtividade, porém sem descuidar da qualidade.

De acordo com a Endeavor, na área farmacêutica, por exemplo, há espaço para o desenvolvimento de tecnologias de análise em tempo real, consumindo menos reagentes, mão de obra e outros recursos, assim como automatizar o processo de controle de qualidade, análise de riscos e investigação de desvios, que atualmente são essencialmente manuais. No caso dos alimentos, uma das principais oportunidades é o rastreamento de produtos para os consumidores. Se uma das promessas do 4.0 também é economizar recursos energéticos, isso passa ainda pela escolha de fontes alternativas de energia, como solar e eólica.

TECNOLOGIAS MAIS ACESSÍVEIS

Tecnologias antes muito caras estão mais acessíveis. As primeiras impressoras 3D custavam US$ 1 milhão na década de 1990, mas hoje há modelos fabricados no Brasil vendidos a R$ 4.500 que ajudam a fazer protótipos e peças customizadas. Outra tecnologia que vem se popularizando e pode ser aplicada ao varejo é o RFID (sigla em inglês para identificação por radiofrequência). Com sensores nas portas de lojas e de galpões e etiquetas inteligentes nos produtos, o sistema sabe quais e quantos itens entram e saem. Quando uma caixa chega ao estoque, é possível detectar em tempo real o que ela contém, sem precisar abri-la, o que permite controlar perdas.

Fazer bom uso dessas tecnologias, porém, não basta para entrar na era dos negócios 4.0. Não dá para investir nas máquinas sem pensar nas pessoas. “O grande desafio das empresas, hoje, é a mudança de mentalidade. É preciso desenvolver uma cultura corporativa de visão aberta, preparada para mudanças rápidas, e treinar os profissionais para cultivar competências como criatividade, empatia, resolução de problemas, resiliência e espírito empreendedor”, avalia Schroeder. Ele ressalta que as pequenas e médias empresas não podem se descuidar, especialmente no que diz respeito ao atendimento ao cliente. “Comece pequeno, experimentando uma tecnologia, adaptando-a ao processo produtivo, e vá crescendo”, orienta.

Neste cenário de tantas transformações, o Brasil precisa explorar todo o seu potencial. “Podemos aproveitar uma vantagem competitiva: a biotecnologia”, salienta Bernardo Silva, presidente da Associação Brasileira de Biotecnologia Industrial (ABBI). O país tem recursos para usar biomassa proveniente da cana-de-açúcar, poupando fontes energéticas tradicionais, e enzimas que otimizam a produção de alimentos, cosméticos e produtos de limpeza. “A biotecnologia está no cerne da indústria 4.0”, frisa Silva. “Temos que priorizar nichos que já nos oferecem soluções aplicáveis”.

METADE DOS EMPRESÁRIOS NÃO APROVEITA NOVAS TECNOLOGIAS

Um levantamento recente feito pela CNI mostra que 52% dos industriais brasileiros ainda não usam nenhuma das tecnologias que fazem parte da revolução 4.0; e que 42% desconhecem os resultados que poderiam alcançar. “A adoção de novas tecnologias no processo produtivo ainda é um desafio no Brasil, especialmente pela falta de conhecimento”, diz Fornari. As soluções mais utilizadas por aqui são os projetos de manufatura por computador (CAD/CAM), automação digital com sensores para controle de processos e sistemas integrados de engenharia para desenvolvimento de produtos. Outras, como internet das coisas, impressão 3D e simulações de modelos virtuais são raras.

 

Fonte: Revista Desenvolve SP – Edição 6, p.14